quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A dentadura quebrada que ajudou no orçamento doméstico

Naquele ano, não sei dizer se 67 ou 68, ela ainda guardava luto pelo pai. Ele havia morrido três meses antes de seu casamento e a única vez em que ela não usou preto durante um ano foi no dia de entrar de branco na igreja. Mas talvez eu esteja me antecipando às informações. O fato é que, naquele dia, a dentadura quebrou. Quando o marido chegou em casa, ela não estava chorando - não chorou nem no enterro do pai e por muito tempo carregou a fama de coração-de-pedra - mas estava desconsolada. Eles não tinham dinheiro. Mesmo.

- Olha, eu passo por tudo nessa vida, mas ficar sem dente eu não fico.

É estranho uma pessoa que usa dentadura aos 22 anos falar isso, mas a culpa não era dela. Um dentista picareta que tinha passado por Gaspar justo quando tinha dado uma dor de dente fez o estrago. Adeus aos quatro dentes da frente da arcada superior, bom-dia vergonha que duraria até os 63 anos, quando finalmente botou implante.

Pediu, pela segunda vez na vida com firmeza, que ele fosse pedir informações no banco. Era contínuo, mas devia ter um sindicato. Vai saber?

E não é que tinha? Marcou para o dia seguinte. Acordaram cedo, tomaram café, ele colocou ela na garupa da bicicleta e andou do Itaum até a rua 9 de Março. Lá explicou onde era o sindicato, na rua Itajaí. Depois ela iria a pé para casa. Não conhece Joinville? Azar, eu sou péssima para distâncias, mas sei que é muito longe para se andar e mais longe ainda para se carregar alguém na garupa.

Dentadura colada, voltou pela rua São Paulo. Quando passou pela Matric viu uma fila enorme de mulheres e uma placa de Precisa-se de Costureira. Não sabia costurar, seguiu andando.

Andou e lembrou do salário do marido. Lembrou das galinhas que criava para poder ter ovos. Lembrou da vez que o primo do marido falou que era uma vergonha um quintal sem nenhuma flor, só tomate, pepino, couve, milho e até aipim. Lembrou da casa de madeira com a "casinha" lá nos fundos. Lembrou do mesmo primo falando ao marido que ele não devia nunca deixar ela trabalhar, que esse povo da roça não sabe nem falar direito. Lembrou que uma vez por mês podia fazer um pedido no nome da cunhada na firma em que ela trabalhava e pagar com desconto - e uma vez por mês ter toicinho no feijão.

Chegou em casa pingando - era aqui que deveria entrar o preto do luto - fez o almoço. O marido chegou, comeu e voltou para o trabalho. Não era um homem carinhoso, bem longe disso, mas sempre foi um homem honesto e trabalhador. Tinha construído a casa ele mesmo, aos finais de semana, com a ajuda braçal dos parentes. Ela realmente queria ajudar mais.

Depois que ele saiu para trabalhar, agarrou a rua e voltou na empresa. A pé. De preto.

Com 170 centímetros de altura, 45 quilos, olhos grandes e verdes e um cabelo louro que tinha sido platinado pelo sol da roça, chamou a atenção. As outras mulheres da fila não ficaram muito contentes quando o gerente chamou ela. Furar fila não é direito, mas fazer o quê quando é o patrão que força?

Na entrevista, mentiu. Disse que já tinha costurado em uma empresa de Blumenau. Sem nunca ter visto uma máquina de faca na frente, fez o teste e passou. Contratada, mentiu de novo. Disse que estava em Joinville há apenas dois meses e que tinha perdido a carteira de trabalho na mudança.

O marido foi chamado - e com ele o pânico da desaprovação. Descobriram que a carteira só poderia ser tirada em Itajaí.

No lugar da desaprovação, uma das tantas e tão disfarçadas provas do amor incondicional dele por ela: pediu licença no dia seguinte e foram de ônibus até Itajaí fazer a carteira. Para comer o dia inteiro, apenas um único chineque para os dois. E foi-se o dinheirinho que tinha guardado.

No dia seguinte ela tomava posse da máquina de costurar na malharia.

Foi assim que minha mãe conseguiu o único emprego com carteira assinada na vida dela. Ficou nele por apenas dois anos, mas isso eu conto depois.

3 comentários:

  1. Anacris, continua a escrever a história, por favor! :)

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  2. Ana, também gostei, quero ver a continuação. Ela agora é costureira de mão cheia?

    Legal esse desprendimento a ponto de conseguir passar num teste fazendo algo que nunca havia feito na vida. Tem que ter peito.

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  3. Ana, amei a história da sua mãe, muito linda mesmo, mostra o quanto ela é guerreira, eu gostaria muito de ler a continuação, parabéns e felicidades...

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Pode escrever aí sem nem pensar, tá tudo liberado.