Em 1983 eu tinha seis anos de idade e ficava muito impressionada por ver Gaspar no Jornal Nacional. Na minha escola em Joinville eu era a única que conhecia aquela cidade, onde minha mãe nasceu. Onde os irmãos, primos, tios, a mãe da minha mãe ainda moravam. Onde todos eles estavam deixando suas casas para ir para não sei onde - e eu não sei mesmo, não tinha noção naquela época. Meses depois de outubro, quando fomos visitar a cidade, havia as marcas da enchente na parede.
Tal qual as formiguinhas, eles reconstruíram Gaspar, reconstruíram Blumenau e devem ter reconstruído mais alguma cidade que deve ter ficado embaixo d'água e eu não me recordo. Brusque? Itajaí? Ilhota?
Quantas vezes você ouviu falar do Baú? Pois é, o irmão da minha mãe se mudou para lá quando não tinha nada. Nem a BR-470. Para chegar lá, tinha que ir pela Jorge Lacerda, pegar uma balsa e andar muitos quilômetros em estrada de barro. Eu estava junto quando minha irmã foi entregar o convite de casamento à bordo de um fusquinha branco. Chovia e ele chegou marrom. Mesmo.
Todos brigaram com esse meu tio. A filha mais velha tinha oito anos. A mais nova, meses. Depois das cinco meninas ainda nasceu mais um menino, lá no meio do fim do mundo. Pois adivinhe, esse meu tio "enricou" à custa de muito trabalho braçal, arroz e bananas. A casa dele, de alvenaria, tinha uma cozinha enorme, para receber não só os seis filhos, genros e noras e netos mas quem mais chegasse. Nos fundos, um mundão sem fim de arrozal para tomar banho no verão. E um galpão com trator para brincar. E um morro de pasto na frente, para descer com folha de palmeira. Eu espero que esse morro continue lá.
Família grande é assim mesmo. Quando a chuva começou, me preocupei com meus irmãos em Joinville. Depois com minha mãe em São Francisco do Sul. Depois com meus tios em Gaspar. Depois com meu tio em Ilhota. E nesse meio tempo ainda sobrava pensamentos para a família do meu pais, distribuída em Joinville, Jaraguá do Sul, Piçarras e Itajaí. Dizem que mesmo os incomunicáveis estão bem e, até provarem o contrário, eu acredito.
Agora eu me preocupo com todos. Já tenho achado 1983 longe demais, leve demais. Já não agüento mais atualizar manchetes com novos mortos e desabrigados. Já não suporto ouvir a chuva. Já não consigo ver TV nem rádio sem chorar. Nem fotos como essa, do Baú, tirada pelo Guto Kuerten e que eu surrupiei dessa matéira do DC Online. Acho que meio que para ficar mais leve jutei tudo que tinha em casa - sapatos, roupas, roupa de cama, edredons, colchonetes - e mandei para a Defesa Civil.
As formigas vão precisar disso tudo para recomeçar.
